Em processo
Processo é se entender com Paulo Freire.
“O homem que se desperta, não importa a idade, e refaz o
caminho da descoberta dos códigos, esse homem dança para si e para Deus.
Foi aqui, nessa sala, que Joaquim se levantou um dia durante
o processo de alfabetização, foi ao quadro, ao quadro negro,
apanhou o giz e escreveu a palavra NINA.
Quando acabou de escrever, ele deu uma gargalhada nervosa
que quase não terminava. E eu disse: Joaquim, que passa, que há contigo?
Ele riu, olhou pra mim e disse: Puxa, Nina é o nome de minha mulher!
Eu ainda me sinto profundamente emocionado pela significação simbólica.
Eu percebia nos olhos deles, nas caras deles, uma espécie de alívio centenário.
É como se tivessem sacudindo pra fora uma pedra de cima dos ombros,
que há séculos repousava neles.
Percebi na briga, o gosto da luta, para superar o obstáculo.”
Paulo Freire
Paulo Freire faz 100 anos, em 2021. O projeto A Cabeça Pensa onde os Pés Pisam - celebrando Paulo Freire no seu centenário, é uma maneira de, a partir de um conjunto de ações articuladas, celebrá-lo, homenageá-lo, fazer justiça a ele, às professoras e aos professores brasileiros. Nosso patrono da educação é um dos pensadores brasileiros mais importantes, o mais reconhecido internacionalmente, um dos intelectuais mais citados em artigos acadêmicos, teses e dissertações mundo afora. Isso já seria motivo de sobra para cantarmos em verso e prosa a existência desse pernambucano eminente. Mas, no nosso caso, não se trata somente de buscar inspirações temáticas para projetos nas efemérides. Nossa relação com o autor da Pedagogia do Oprimido é antiga e é estruturante de nossa maneira de ver, pensar e agir, ética, estética e politicamente.
Em 2008, quando nos pusemos a estudar a vida e obra do poeta Patativa do Assaré no intuito de criarmos nosso primeiro trabalho, nos deparamos com uma dificuldade dramatúrgica: Por onde abordar uma obra tão vasta? Que caminho seguir? Não desejávamos realizar um espetáculo biográfico e também não nos agradava a ideia de realizar um sarau ou algum mero alinhamento de canções e poemas. Sabíamos que se bem trabalhado e aprofundado, Patativa poderia nos dar uma visão singular do Brasil. Foi na busca de um veio que apontasse caminhos dramatúrgicos possíveis que iniciamos o estudo da obra de Paulo Freire. O poeta cearense, autor de uma obra gigantesca, havia estudado somente 6 meses em escola regular. Depois, de leitura em leitura, desenvolveu a capacidade de ler as palavras, as frases. O processo de alfabetização de nosso personagem mostrou-se inseparável de sua formação ética e política.
Patativa cantou em versos seu processo de aprendizagem:
”Eu nasci ouvindo os cantos
das aves de minha serra
e vendo os belos encantos
que a mata bonita encerra
foi ali que eu fui crescendo
fui vendo e fui aprendendo
no livro da natureza
onde Deus é mais visível
o coração mais sensível
e a vida tem mais pureza.
Sem poder fazer escolhas
de livro artificial
estudei nas lindas folhas
do meu livro natural
e, assim, longe da cidade
lendo nessa faculdade
que tem todos os sinais
com esses estudos meus
aprendi amar a Deus
na vida dos animais.”
Patativa do Assaré.
Impossível não encontrar ressonância na célebre máxima de Paulo Freire: “É preciso aprender a ler o mundo, antes de ler as palavras.” Patativa leu o mundo, depois leu as palavras, politizou- se, inventou em si mesmo, autodidata que foi, o projeto pedagógico freiriano.
O nome com o qual nos batizamos, em meados de 2008, surgiu de nossas primeiras leituras da Pedagogia do Oprimido, No processo de alfabetização dos trabalhadores de Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1963, o professor descobriu que deveria, antes de mais nada, buscar nas experiências concretas de produção e reprodução da vida e no vocabulário daqueles homens e mulheres, palavras que fossem prenhes de sentido e a partir das quais fosse possível iniciar o processo de fazê-los desbravar o mundo das palavras lidas e escritas, sem nunca desprezar seus saberes próprios acumulados. A palavra altamente significativa daquele determinado grupo, a palavra geradora daqueles trabalhadores foi ti-jo-lo. Revelou se assim, nosso nome, freirianamente, Cia do Tijolo. Dessa forma, fica evidente nossa relação umbilical com o homenageado. Alguns anos depois, iríamos criar o espetáculo Ledores no Breu, baseado na práxis do pensador pernambucano. Com Ledores no Breu, a Cia. do Tijolo circulou pelo país, apresentou - se em escolas, EJAs, associações de moradores, teatros, praças, em mais de sessenta cidades.
O projeto A Cabeça pensa onde os Pés Pisam - celebrando Paulo Freire no seu centenário, pretende celebrar com um conjunto de ações, esse professor tão importante para nós, da Cia do Tijolo, para nós, cidadãos brasileiros. Além do mais, o desejo de comemorar acaba se tornando um imperativo, uma forma de fazer frente aos detratores de sua vida e de sua obra que, paradoxalmente, desconhecem-na completamente.
É preciso festejar Paulo Freire. Mas como fazê-lo freirianamente? Como, mais que falar sobre o homem e sobre a obra, encontrar a melhor forma de atuá-la, vivê-la, fazer dela uma práxis?
O que seria celebrar Paulo Freire freirianamente? Como homenagear, mais do que o homem, tantos educadores e educadoras que saíram pelos interiores do país alfabetizando, aprendendo, ensinando, construindo o freiriano para além de Paulo Freire?
Chegamos assim à escritora Maria Valéria Rezende. Escritora temporã, ganhadora de três prêmios Jabutis, feminista, criadora do Mulherio das Letras - grupo que reúne mulheres escritoras de todo o Brasil – educadora popular por mais de quarenta anos, freira e nossa amiga.
O livro O Voo da guará vermelha, que serve de inspiração para o próximo espetáculo da Cia. do Tijolo, encabeça toda uma série de ações em homenagem às professoras e professores brasileiros, a toda sua dedicação, resiliência, a toda sua importância para a construção de homens e mulheres autônomos, capazes de própria elaboração de conduta e pensamento crítico.
A partir dos olhos e ouvidos de tantos professores e professoras, o projeto A Cabeça Pensa onde os Pés Pisam - celebrando Paulo Freire no seu centenário, representa uma forma de relermos nossa trajetória, olharmo-nos nos olhos e refletirmos, juntos e juntas, no palco, na rua, na praça, junto com as muitas plateias, sobre as condições atuais de existência em São Paulo, no Brasil e no mundo.
SOBRE A IMPORTÂNCIA DE CELEBRAR PAULO FREIRE FREIRIANAMENTE
Tese VI: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. (…) O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” Walter Benjamin - Teses sobre a história.
A professora Marilena Chauí, respondendo à pergunta sobre a diferença entre Paulo Freire e a maioria dos intelectuais brasileiros, enfatiza o fato de que o grande pensador pernambucano transforma um conjunto de ideias em uma práxis (unidade dialética do pensar e do ser, ao mesmo tempo saber e prática, conhecimento e ação). A escola pensada e posta em prática por Paulo Freire é um espaço de transformação real e cotidiana de alunos e professores. O processo de aprendizagem é sempre conjunto. Alunos, professores, familiares, funcionários, todos aprendem cotidianamente. O aprendizado se realiza conjuntamente no espaço da troca. Surge aí, para nós, uma encruzilhada: no atual momento do Brasil, julgamos ser imensamente necessário homenagear, celebrar, estudar Paulo Freire. Seu nome tem sido sistematicamente achincalhado há alguns anos. Muitos daqueles que escutam esses ataques não conhecem o autor, nunca leram sua obra e tornam- se presas fáceis das mentiras, das falácias forjadas no seio de nossa sociedade autoritária.
No entanto, nada mais estranho às suas concepções, nada menos Freiriano do que elevá-lo à categoria de herói, salvador, portador de um método completo produzido exclusivamente por sua mente genial. Acreditamos que estaríamos
traindo profundamente o homenageado ao homenageá-lo dessa maneira, como quem erige uma estátua de pedra. O método Paulo Freire, se é que podemos chamá-lo método (preferimos falar em práxis, ou em ética freiriana), foi construído por tantos e tantas que saíram pelos rincões do Brasil, vivendo a aventura de ensinar aprendendo.
Foi na tentativa de superar esse impasse, que surgiu o desejo de homenageá-lo através da obra de uma educadora popular, escritora, vencedora por três vezes do mais importante prêmio da literatura brasileira, o Jabuti, que trabalha o tema da educação em seus contos, poemas e romances. Maria Valéria Rezende, essa desconhecida do grande público. Outrora freira e missionária. Maria Valéria descreve em seus textos toda “buniteza” dolorosa e vital implicada nos processos educativos.
Através de Maria Valéria queremos abraçar as professoras e professores desse Brasil.
QUEM É MARIA VALÉRIA REZENDE E A NECESSIDADE DE CONHECÊ-LA Reportagem do Le monde Diplomatique - por Thais Ilheu:
“Seria preciso ao menos outros setenta e seis anos ao lado de Maria Valéria Rezende para ouvir com a merecida minúcia sobre os que ela já viveu. “A base de tudo é perguntar e ouvir. É assim que eu vivo, não sei ser de outro jeito”. De tanto perguntar e ouvir, Maria Valéria carrega um mundo inteiro dentro de si — mundo este que começou a ser revelado apenas há dezoito anos, quando a missionária e educadora popular estreou na literatura com seu primeiro livro, Vasto Mundo. Na literatura formal. Antes disso, suas obras batidas à máquina e costuradas à mão já circulavam por aí, entre uma casa ou outra do sertão. Durante suas longas estadias no interior e “depois de ler quatro vezes cada livro que tinha”, ela escrevia para se divertir e depois presenteava os amigos. Anos depois, as cópias de papel carbono amassadas entre livros e dicionários lhe renderam três prêmios Jabutis, entre eles o de 2015 na categoria Romance e Livro do Ano de Ficção com Quarenta Dias.
Esse caminho para a literatura poderia até ter sido mais curto. Nascida em família de artistas — Maria Valéria é sobrinha-neta de Vicente de Carvalho (jornalista, político e abolicionista) —, ela admite que não se empolgava diante das opções para as mulheres da época: cuidar da família, ser escritora ou professora. Escolheu dedicar a vida à educação, mas não exatamente da forma que se esperava: “eu achava muito mais divertido ser professora da roça, no meio do mundo, não uma professora tradicional”. Depois de integrar a equipe nacional da Juventude Estudantil Católica, recusou uma posição no conselho mundial e decidiu entrar para o noviciado. E depois? “Daí eu ganhei o mundo”.
Viu nascer (e ajudou a construir) a Teologia da Libertação, morou ao lado do escritor Gabriel García Márquez, andou pelas ruas de Cuba ao lado de Fidel, transcreveu e ajudou a publicar as cartas de Frei Betto da prisão, sentiu o frio e silêncio cortante dos anos de chumbo no Brasil e acompanha agora a volta aos holofotes de uma “aristocracia” da qual assistiu o auge e a decadência. Tudo isso sob o mantra freiriano que espalhou pelo mundo. Perguntar e ouvir. Que sorte a nossa que há dezessete anos Maria Valéria resolveu também contar.”
Maria Valéria Rezende é mais uma dessas mulheres - assim como Ivone Gebara, ambas freiras e também amigas - que passaram a fazer parte de nossas fontes inspiradoras e temos sorte de tê-las vivas e perto de nós. Maria Valéria através de suas andanças pelo mundo, traduziu em livros, em palavras lavradas com maestria a importância da educação na formação do indivíduo.
Nós, da Cia. do Tijolo, acreditamos na importância de investigarmos os escritos de uma mulher fundante na construção do país, que muitas vezes, como outras mulheres, ainda são desconhecidas da maioria de nós. E ter uma autora dessa envergadura como nossa cacimba de pesquisa, uma mulher que além de pedagoga e autora, também criou o Mulherio das Letras, que é um movimento que dá luz às mulheres escritoras e às editoras independentes em todo o país, nos enche os pulmões de entusiasmo.
Dinho Lima Flor
Ator, Diretor e Co-Fundador
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